Este blog é composto de textos extraídos do belíssimo e raro livro de 1938 chamado "Novo Manual das Mães Cristãs" do Reverendíssimo Padre Theodoro Ratisbona da Editora Vozes.

sábado, 19 de junho de 2010

XIV – Organização do Coração

Nosso coração, diz São Thomaz é um foco de vida; é o Santuário do amor. É ai que Deus habita e se regozija.
O coração, diz Santa Hildegarda, é um instrumento de música simbolizado pelo saltério de Davi. Mas, ai de nós! No seu estado atual, ele tem notas mudas e discordantes; faltam-lhe oitavas. O grande e delicado trabalho da vida cristã consiste em reorganizá-lo.
Qual é a função do coração na hierarquia das potências e das faculdades mentais? Ele ama; eis ai a sua lei e a sua vida. É um fogo: precisa arder, quando não arde, extingue-se e morre.
A religião tem por fim vivificar esta chama e dirigi-la para o seu termo superior. “Fili, præbe mihi cor tuum!” “Meu filho, dá-me o teu coração”, diz o Deus de Amor.
Nada exige mais vigilância e precauções do que a organização das forças intimas que saem do coração. Se o fogo material, abandonado a si mesmo, produz desastres, muito mais devemos temer os desvarios do coração quando o amor se expande sem regra nem medida.
Deus coordenou em mim todos os poderes do amor, diz o salmista: “Ordinavit in me caritatem”. Como há no sol um foco de onde partem infinitos raios luminosos, também do centro do nosso coração dimanam inúmero sentimentos e expansões que correspondem a objetos múltiplos. Estes diferentes objetos podem ter direitos ao nosso amor, mas todos não poderiam participar dele no mesmo grau. A boa regra no amor consiste em amar cada um segundo a sua situação em relação a nós, dando a cada um a porção de afeto que lhe é devido, sem transportar a este o sentimento que pertence àquele.
Assim, quando o Evangelho preceitua que amemos a todos, sem exceção dos nossos inimigos, não se segue daí que devamos amar a todo mundo da mesma maneira. Nosso coração não projeta, como o fogo terrestre um flama cega que se aplica indistinta e necessariamente a toda a espécie de coisas. Ele ama com discernimento, com liberdade e com inteligência. É o que a mãe compreenderá com o seu coração cristão.
Amais a Deus; e deveis amá-Lo acima de tudo e de todos. Amais vosso esposo, vossos filhos, vossos parentes, vossos amigos e vosso próximo. Mas estes amores são distintos, de modo que o raio destinado a um não poderia, sem desordem ou perversão, dirigir-se a outro.
Cada amor tem a sua natureza, o seu caráter, o seu destino especial e o seu maior ou menor grau de intensidade e profundeza. Vós amais seguramente a vosso esposo de uma maneira diversa da que amais a vossos filhos: o amor que a estes tendes é diverso do que tendes a vossos pais e assim por diante. Não podemos alterar os graus dessa hierarquia. É dando a cada um integralmente a sua parte legítima que a vida do coração se regulariza e brotam deste as alegrias, a paz e a ventura.
O coração humano tem sido admiravelmente comparado  a este instrumento de dez cordas que o Salmista arrancava tão encantadoras melodias. Cada uma de suas cordas produzia um som particular sob os dedos do cantor real, e todas juntamente vibravam em uma harmoniosa unidade. Assim se devem exercer alternada ou simultaneamente as diversas afeições do coração; e, desse modo, longe de se embaraçarem umas às outras ou de comprimirem a sua ação recíproca, elas mutuamente se sustêm, se completam e se dilatam na plenitude de sua perfeição.
O amor de Deus não exclui o amor de uma mãe; não enfraquece o amor de uma esposa; não diminui as amizades santas e não impede as relações sociais. Todos esses sentimentos, ao contrário, se realçam uns aos outros e se desenvolvem num mesmo concerto.
Apliquemos esta medida a nossa consciência. Talvez que, se nos examinarmos com atenção, possamos verificar em nossas vibrações íntimas mais de uma dissonância que seja a causa de nossas agitações e secretas tristezas.
De que modo amais a Deus? “Tu amarás teu Deus, com todas as tuas forças, com todas as tuas faculdades, com toda a tua alma”.
Eis ai o grande mandamento promulgado ao coração do homem; é a nota Tônica  a que devem corresponder todas as outras notas da alma. Somos nós fiéis a esta lei? Amamos o Senhor nosso Deus acima de tudo mais? Admira que em geral nos examinemos tão pouco acerca desse preceito capital, quando nos aproximamos do tribunal da penitência; ao passo que muitas vezes andamos a calcular minuciosamente  o alcance das fragilidades secundárias! Não se trata de pronunciar simplesmente atos de amor; é um amor real e substancial, vivido e ardente, que Deus reclama. E na verdade lhe damos nós esta parte principal de nosso coração?
Depois da afeição por vezes apaixonada e cega que a vossos filhos consagrais, restam ainda para Deus alguns sentimentos?
Esquecemos que tudo o que se apodera do amor que lhe devemos é uma idolatria, e que a idolatria é, dentre todas as prevaricações, a mais perigosa e a mais condenável. “Filioli, custodite vos a simulacris”. “Meus filhos, guardai-vos dos ídolos” diz o Apóstolo.
O verdadeiro sentido do primeiro mandamento, segundo observa São Francisco de Sales, nos é indicado pela palavra “dilectio”, que o concílio de Trento emprega em sua doutrina sobre o amor de Deus. A dileção é um amor de escolha e preferência; de sorte que o amor de Deus deve ser um amor de predileção que domina e abrange todos os outros amores.

Tal é a grande lei da vida. Só Deus, fonte de amor, é capaz de preencher o vasto âmbito de nosso coração. “Se alguém tem sede, que venha a mim”, disse Nosso Senhor Jesus Cristo. Só Ele, manancial perene da graça, verte em nossas almas o que há de mais doce, de mais delicioso e excelente;  e, quando essa vivificante unção nos alimenta, nós temos do nosso lado muito para dar aos outros do muito que em nós transborda, pois que as nossas almas saciadas de amor saberão por sua vez amar superabundante e divinamente.
Lê-se em certos livros de devoção que não devemos amar a criatura. Que quer isto dizer? Pois, se de uma parte o Evangelho manda que nos amemos uns aos outros, como é que de outra parte nos proíbem esse amor? Como conciliar estes dois preceitos tão contraditórios na aparência? – A contradição ai não é mais do que um mero equívoco. Não amar a criatura é recusar-lhe o amor que só ao Criador devemos. Mas, quando cedemos a Deus o Seu lugar supremo e Ele ocupa o santuário do nosso coração e regula todas as afeições que ai se formam, então o amor flui benéfico e podemos nos amar uns aos outros com segurança, com generosidade, com magnanimidade, como o próprio Jesus Cristo nos amou.
Partindo deste princípio superior, a esposa amará seu esposo, e o seu amor será mais sólido e durável por se não basear somente em simpatias que mudam e vantagens que desaparecem; ela amará seu esposo porque ela é a sua companheira, o seu auxílio, a sua coadjutora, diz a Escritura; Irá amá-lo porque deve ser o seu anjo de consolação e de salvação.
Não digais pois: Ele me faz infeliz; ele não me compreende; nossos gênios não combinam. Nada disso justifica o afrouxamento das afeições cristãs. Se tal homem tem defeitos, estes desagradam seguramente a santidade de Deus muito mais do que a vós, que do vosso lado também tendes defeitos.
Todavia Deus não cessa de o amar; Deus o suporta e o perdoa. Imitai o proceder de Deus; amai a vosso esposo tal qual ele é; educai-o pela vossa afeição doce e indulgente;  oponha a seus defeitos as vossas boas qualidades; e quanto mais imperfeições ele tiver, mais méritos tereis vós. A vossa longanimidade tocará sua alma, santificará a vossa e atrairá bênçãos ao lar da família.
Seria preciso falar aqui no amor que a mãe deve ter a seus filhos? Este preceito em honra da natureza humana, não se acha em trecho algum da Escritura Sagrada; mas de tal modo está ele gravado no coração que, não obstante a queda do homem de que resultou a ruína de tantos sentimentos nobres, o amor maternal subsiste sempre com incomparável energia. Deus não teve necessidade de dizer a uma mãe: Tu amarás a teu filho.
Convém ainda assim regular esse amor, pois que freqüentes vezes a exaltação o alucina e cega. Amai a vossos filhos segundo Deus e para Deus; mas não os ameis para vós mesmas, não os considereis como propriedades que houvésseis para sempre adquirido, nem os transformeis em objetos de gozo e adoração. Estes excessos redundam infalivelmente em decepções.
Não, as mães que amam a seus filhos com essa ternura impetuosa e desordenada, não sabem mais amar a Deus; quando muito algum amor lhes restará ainda para seu marido e para seus parentes. Há nessa ternura excessiva uma espécie de embriaguez que as atordoa e cega, provocando muitas vezes remorsos e lágrimas. Não raro se vêem, entretanto, pobres crianças, órfãos de mãe, que crescem e prosperam, graças ao bom anjo que invisivelmente as acompanha e guarda; ao passo que outras, com as quais se empregam tão exagerados desvelos, ficam enfermiças, caquéticas e sem desenvolvimento. Algumas até, apesar de tantos carinhos, ou mesmo por causa deles, vem a desabonar mais tarde um nome que deveriam honrar.
Há mães que não se contentam em idolatrar os filhos; querem elas próprias ser por estes idolatradas. Cruéis ciúmes se misturam ás suas exigências, e elas se fazem como que o objeto exclusivo ou o fim único da vida de seus filhos. Inquietam-se e afligem-se com tudo; querem tudo prevenir e dispor, como se fossem as únicas encarregadas de lhes fixar o futuro; e nessa atividade veemente, esquecendo o papel da Providência excluem a parte que a Deus toca nos seus destinos. Que é que daí resulta? Deus deixa fazer; e a prudência humana sossobra!
Os próprios filhos, oprimidos pelos constantes abraços de uma afeição egoísta decididamente se aborrecem desses excessos de amor, e sacodem afinal o jugo, dilacerando, as vezes, o coração de suas mães. Amai aos parentes, amai aos amigos, amai aos próprios inimigos; mas rezando por eles. Nós não podemos amar, a todos, de igual maneira, nem o devemos fazer.
Cada um tem os seus direitos e os seus títulos ao nosso afeto; cada um se acha para conosco em uma situação que atrai um raio da nossa alma e marca a medida dos nossos sentimentos.
Nosso Senhor nos oferece no Evangelho exemplos notáveis destes diferentes graus do amor. Ele ama toda a multidão dos seus discípulos; mas ama de preferência os doze apóstolos. Dentre estes doze, há três que são manifestamente o objeto de uma distinção especial: só eles assistem à divina agonia e só eles são testemunhas da cena do Tabor. E enfim, dentre estes três preferidos, ainda há um que é o objeto de uma predileção mais singular: é aquele que o Evangelho designa sempre pelo nome de bem-amado.
Tal é a graduação das afeições santas.
É assim que os sentimentos se harmonizam em uma ordem sagrada, sem se confundirem entre si e sem que nenhum exclua os outros. O coração cristãmente organizado ama a todo o mundo e, acima de tudo, ama Aquele que é o foco do eterno amor.

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